.criatura


Quando se deu conta, lá estava ela, olhando fixo e inocente. Não tivera tempo nem de argumentar, ou quem sabe pensar mais um pouco antes de tomar a decisão. Antes que pudesse dizer um ai, suspirando fundo talvez, ele já estava ali na sala, tateando seu espaço e reivindicando atenção. Pequena, arrepiada e desengonçada, a criatura era a promessa de dias incômodos e até bem mais do que isso - a certeza de uma responsabilidade para a vida toda, que ele só tomaria para si se fosse louco. Certo, ceto. Mas as intempéries da vida que foram desabando no seu colo nos últimos anos, os sonhos que não se concretizaram e o fato de ainda estar nesse mundo, positivo e operante, de qualquer forma o fizeram convencer-se de que estava, sim, tomado por algum tipo de insanidade. E diante disso, aquele novo inquilino em seu lar tinha tudo para ser algo bem menor que um estorvo. Com sorte, poderia até trazer algum tipo de alento - louco que ele estava, era bem capaz de acreditar que a presença de uma alma pura por si só afugentaria o mal que ronda a existência dos que perderam a fé. Enfim, a sorte estava lançada.
Os primeiros dias passaram rápido, bem mais do que imaginara. Não se sabe se a criatura se adaptou à rotina da casa ou ao contrário - de certo, só que não conseguia mais viver sem aquela imprevisibilidade ambulante, sempre ocupada em provocar algum desastre e sair dele lambendo-se, com o mesmo olhar de quem não tinha nada haver com aquilo - o mesmo de sempre. Ela cresceu, ficou bonita, ágil, mas não mudou em nada o seu comportamento. Ainda era aquele curioso arremedo de gente, tomado por iras, ciúmes, ímpetos de vingança e alegrias coléricas. Chegava a ser perturbador como se parecia com ele mesmo, em algum momento da vida - embaralhando-se em suas pernas num ataque surpresa, jogando-se ao chão de cansaço, arfante com a língua para fora, dormindo nos lugares e em posições mais improváveis nas tardes quentes... Por causa da sua inconseqüência, da sua conivência com um capricho, nasceram doces laços que não poderiam ser rompidos de uma forma que não fosse amarga. Tanto que ele preferia mil vezes ficar de vigília pelas estripulias do seu amável algoz do que pensar no inevitável desfecho da relação, que poderia ser trágico (ainda mais por um descuido seu!) ou inexplicável, silencioso, solene. Bom, tem bastante tempo que não pensa mais nisso.
Logo, sentiu vontade de compartilhar aquela felicidade que, de tão íntima e egoísta, parecia indecente. E descobriu que em outros lares havia pessoas que criaram laços parecidos com criaturas parecidas - mas nenhuma tão bonita, charmosa, perspicaz, cheia de humor e de atitude quanto a sua, é claro. Para ele, sua nova paixão era quase como uma Britney Spears que não tivesse crescido e deixado os hormônios tomarem as rédeas de sua vida. Baby one more time é lá vai ela dando pinotes, alucinadamente feliz com algo que talvez nunca se saiba o que é. Porque o mistério sobre o que se passa naquela cabecinha e, principalmente, sobre aquele olhar persistam aflitivos. Quanto de pureza realmente haverá ali? O que será que ela quer dizer quando olha tão fixamente? Haverá um sentido profundo naquilo, alguma prospecção em curso ou será que aqueles olhos são apenas espelhos, como um decepcionante vazio por trás? A criatura é tão fascinante quanta aquela Britney dos bons tempos, tanto quanto as Capitus e outras mulheres fatais da literatura. Mas, seus enigmas não se explicam pelo confortável viés da sexualidade e podem surgir assim, de graça, numa displicente auto-lambida ou numa altiva, requebrada e estratégica saída de cena. Um intricado teatro que não se aprende na CAL ou no Actor's Studio.
A ele, só resta acompanhar impassível a essa eterna encenação - ou seria também balé? O que importa é que suas interferências são infrutíferas, ridículas, porque a criatura tem a perfeita noção de que não veio a esse mundo pra obedecer, resistindo ao adestramento com uma inteligência aguda que não parece caber em tão diminuto crânio. Talvez ele ainda tenha muito o que aprender com tudo aquilo. E talvez seja exatamente isso que aquele olhar esteja querendo comunicar, com uma ponta de condescência por uma mente tão inferior.

.de uma riqueza de detalhes que parece ser uma biografia-ditada-por-mim.
Silvio Essinger - Criatura


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