Liberdade Vigiada



Chega a ser, a princípio, um contra-senso falar sobre censura ou liberdade vigiada quando o assunto é internet. Aos quatro ventos, todos os dias, ouvem-se argumentos e pregações sobre um meio liberto, democrático, em que todos teriam, potencialmente, as mesmas chances de participar e de interagir. Cada internauta busca o que quer de acordo com suas necessidades (sem nenhum trocadilho comunista).

Entretanto, ao que parece, as promessas de liberdade e de democracia acabam agindo como flagelos do que elas mesmo apregoam. Acabam escondendo um mundo bem maior e de outras possibilidades ao se apresentarem como características fundamentais.

A liberdade é exercida, na maioria das vezes, de forma individual, isolada e, por vezes, até egoísta. A navegação pela internet pressupõe uma sociedade recheada de passageiros solitários em seu próprio barco. Cada um de nós é um Amyr Klink em potencial, cheios de poder de decisão sobre nossos destinos, julgando-nos sem limites como o mar que nos cerca mas, no fundo, cercados e dependentes dos recursos de nosso próprio barco.

Alguém, com toda razão, perguntaria: mas e os chats? Não há interações e conversas, em tempo real, que representam exatamente o contrário de tudo o que acaba de ser dito? Não ocorre exatamente o contrário, uma forma de afastar a solidão ao entrarmos em contato com outras pessoas? A resposta mais adequada é sim e não.

Sim, existe esse potencial, existem casos que insinuam exatamente o contrário, existem muitas pessoas que conquistam amizades e estabelecem relações a princípio impensáveis na vida real tendo como passo inicial a internet. Mas, na verdade, é bem por aí o problema.

O espaço, que apresentaria potenciais quase infinitos para a expressão da fantasia e do subjetivo, só é utilizado da maneira mais óbvia. É apenas um trampolim para relações reais; apenas mais um meio de se conhecer pessoas, não diferente dos diversos existentes, como bares, boates, colégios.

E, não raro, mesmo a situação de conhecer pessoas fica prejudicada por um uso pouco compreensível do valor liberdade. Vários internautas, ao perceberem-se capazes de agir como emissores, simplesmente afastam de si a possibilidade de serem receptores. Exacerbam suas idéias e crenças de maneira absolutamente narcísica, sem querer saber ou interessar-se por qualquer opinião contrária. Talvez uma forma de manifestar toda uma fúria acumulada por a vida inteira terem agido como receptores passivos.

O outro, nosso interlocutor, é a figura mais disforme, efêmera e dispensável possível. É apenas um depositário de nossas idéias. O problema é que muitas vezes ele nos olha da mesma forma. E, então, o jogo passa a ser apenas um duelo de gritos ortográficos, pouco importando o sentido e a validade dos argumentos. A função lingüística mais evidente é a fática, pois fazemos questão de testar o canal, de saber se o outro ainda está ali, disponível para nos assistir em nossa performance. E, ao sairmos, além de não mudarmos nossa opinião inicial, pouco lembramos sobre o que nos foi dito por nossos interlocutores.

A sensação é parecida com o que sentimos em relação ao nosso cérebro. Temos um grande reservatório para processamento de informações e conhecimentos, mas acabamos utilizando não mais que 15% de seu potencial. Nos chats, principalmente nos canais para sexo, não se vê nada além das repetições de diálogos de filmes pornôs ou da exacerbação de um imaginário exaustivamente estabelecido pela televisão e por outros mídias especializados, como revistas eróticas. Não que se esperasse uma reinvenção da sexualidade, mas sempre se falou no potencial de promessas de fantasia ilimitada, do anonimato protetor, da impossibilidade de represálias, de uma revalorização da escrita. Todas elas ficam esquecidas. A experimentação, em geral, dá espaço à simples repetições, cíclicas, previsíveis e pouco aprofundadas. As abordagens são uniformes, os argumentos para sedução obedecem a uma lista mais do que limitada de possibilidades e o vocabulário utilizado durante uma sessão de sexo virtual é paupérrimo.

Dessa forma, os chats atuam como mais um espaço discursivo, recheado de regras de conduta, permeado de interditos e com um código de relações pré-estabelecido. Pode-se falar, discutir, descrever tudo, de preferência minuciosamente, pois a sensação de excesso nos conforta. Mas, ao mesmo tempo, nos limita: ao pensarmos que desfrutamos de tudo nem pensamos em criação, em improviso ou em novidades. O que existe está ali e é indiscutível, só nos cumpre utilizar, agindo como engrenagens funcionais.

Assim, a liberdade existe mas é desperdiçada, é presente mas subaproveitada, é potencial mas pouco trabalhada. Em miúdos, e para encaixarmos com a linguagem que lidamos, é real mas encarada como virtual.

E, no fim das contas, esse cerceamento de liberdade que nós mesmo nos impomos é bem mais cruel porque disfarçado. É velado, escondido e voluntário. Não precisamos de um "Big Brother" nos vigiando, pois agimos exatamente da forma que convém. Estamos participando da vida social do meio mais democrático e liberto que já foi inventado, e isso nos basta e nos convence.

Voltando um pouquinho na história dos meios de comunicação, observa-se algo semelhante ao que aconteceu com o surgimento do rádio e, posteriormente, com a televisão. Falava-se muito no rádio como a ferramenta que viria para educar e ajudar no processo de formação e até de alfabetização. O ideal, no entanto, deu lugar ao comercial. Com a televisão, o processo foi idêntico, inclusive nas conseqüências. É bem verdade que a internet ainda está na infância, mas os adultos que a educam não estão, ao que tudo indica, interessados em que ela conheça ou tome contato com qualquer coisa além dos limites impostos a princípio.

.Por Gustavo Cunha.


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